
A “sobreabundante” população de cerca de 300 mil javalis em Portugal: animais “estão a atacar em todo o lado” e com “prejuízos gravíssimos” (EXPRESSO)
A perceção de que existe um grande número de javalis em Portugal não é nova, mas um estudo recentemente divulgado veio confirmar a ideia, concretizando um valor: são cerca de 300 mil. Os estragos causados, sobretudo na agricultura, também não são novidade. Agora, o ICNF e as associações que representam caçadores e agricultores procuram encontrar respostas para o problema. No terreno, pede-se que o Estado assuma responsabilidades.
“São autênticas máquinas, parecem quase tratores. Estragam mesmo tudo.” É assim que o presidente da câmara de Sever do Vouga, no distrito de Aveiro, descreve o comportamento dos javalis, cujos relatos de estragos causados surgem um pouco por todo o país. No caso do concelho da região Centro, em que “cerca de 70%” do território é floresta, os prejuízos atingem “dezenas de milhares de euros”, segundo Pedro Lobo.
No final de maio, a publicação do Plano Estratégico e de Ação do Javali veio confirmar a perceção que já existia no terreno, ao longo dos últimos anos, sobre o elevado número de javalis em Portugal: a análise, promovida pelo Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas (ICNF) e elaborada por especialistas da Universidade de Aveiro, concluiu que são cerca de 300 mil, uma população “sobreabundante”.
O aumento deu-se nas últimas duas a três décadas e está “em linha com o que aconteceu na maioria dos países europeus”, ou seja, “não é um fenómeno nacional, é internacional”, explica ao Expresso um dos autores do estudo, Carlos Fonseca, do CoLAB ForestWISE/Universidade de Aveiro.
São vários os fatores que o justificam, desde “algum abandono do mundo rural”, que propicia “habitats mais favoráveis”, à própria reprodução da espécie, que é “muito prolífica”, e também a falta de predadores naturais. A distribuição pelo país é “generalizada”, incluindo no litoral e em zonas urbanas, mas as regiões de Trás-os-Montes, Beira Interior e Alentejo registam uma maior densidade.
A par com este retrato surge a preocupação com a peste suína africana na Europa, que tem vindo a “expandir-se para oeste”, indica Carlos Fonseca. “A probabilidade de esta doença chegar às populações de javali em Portugal é considerável, o que faz com que tenhamos de nos prevenir relativamente a uma doença que pode provocar danos não só do ponto de vista ecológico e ambiental, mas também económico, uma vez que é diretamente transmissível aos porcos, com consequências económicas desastrosas.”
RESPONDER AO PROBLEMA
O Plano Estratégico e de Ação do Javali sugere que, nos próximos cinco a dez anos, a taxa de extração aumente em 20 a 30% face ao valor atual (10%) – a caça deverá ser a “ferramenta privilegiada” para controlar a população, aponta Carlos Fonseca. “É aumentar a pressão sobre esta espécie através da atividade cinegética, que deve ser feita de uma forma mais intensa.”
Para fazer face à situação, o ICNF tem vindo a publicar editais de correção extraordinária da densidade de javalis: até 30 de setembro, um dos processos de caça, o de espera, é permitido “dentro ou fora do período de lua cheia”. “O objetivo agora é fazer uma alteração ao decretolei da caça para que, durante todo o ano, o processo de espera possa ser efetuado, independentemente da lua. O edital é feito porque a legislação ainda não permite que fora dos períodos das noites de lua cheia possa ser feita caça”, indica ao Expresso o vice-presidente do ICNF, Paulo Salsa.
O mesmo edital refere que, nas culturas de milho, são também permitidas batidas com ou sem cães e com ou sem utilização de arma de fogo. Neste caso, os prejuízos provocados pelos javalis ascenderam a oito milhões de euros no ano passado. O recurso às batidas com cães e espingardas é um dos processos que “surte mais efeito” no verão, segundo Jacinto Amaro, presidente da Fencaça. Isto porque os animais “vão lá passar os meses de julho, agosto e setembro, onde têm alimentação, refúgio e água”.
Além das medidas relacionadas com a caça, o ICNF tem apelado aos agricultores para que instalem cercas elétricas, como forma de “afugentar a espécie”. Samuel Infante, da Quercus, alerta para o “aumento das técnicas ilegais de controlo”, nomeadamente a colocação de “armadilhas de ferro, que são muito perigosas”, inclusivamente para espécies em perigo de extinção, como é o caso do lobo ou do lince.
Tendo como base o estudo realizado, o ICNF irá promover mais reuniões com as entidades das áreas da caça e da agricultura para debater respostas “em conjunto”, uma vez que este “não é um problema que se resolva só por parte do Estado”. Segundo Paulo Salsa, em cima da mesa está também a “eventual possibilidade de haver seguros de colheita para os agricultores com estes prejuízos”.
PAGAR OS PREJUÍZOS
Na região Centro, os “prejuízos gravíssimos” na agricultura prolongam-se sobretudo desde os incêndios de 2017, enquadra Isménio Oliveira, coordenador da Associação Distrital dos Agricultores de Coimbra (ADACO), filiada da Confederação Nacional da Agricultura (CNA), ao Expresso. “Muitas pessoas deixaram de semear, principalmente milho, mas os prejuízos são nas vinhas, nos cereais, nas árvores de frutos secos”, enumera.
A lei prevê que o pagamento dos prejuízos dentro das zonas de caça é da responsabilidade das entidades gestoras dessas zonas. “O que acontece é que as zonas de caça associativa dizem que não têm dinheiro e não pagam”, aponta Isménio Oliveira. Para o responsável, é preciso “o Governo assumir o pagamento dos prejuízos ou então obrigar, a quem de direito, que os pague, neste caso as zonas de caça associativa”. “Esta situação é que não pode continuar, com prejuízos de centenas de milhares de euros.”
Também a Fencaça considera que o Estado deve ser o “responsável”. “Num terreno que foi danificado por uma vara de javalis naquela noite, não sabemos se essa vara reside dentro daquela zona de caça, pode vir da outra do lado. Durante uma noite, os javalis fazem dez, 15, 20 quilómetros à procura de alimento”, afirma Jacinto Amaro. Precisamente porque a natureza “não tem fronteiras”, é necessário que estas populações sejam “geridas de uma maneira mais ampla e alargada”, faltando “planos integrados a nível regional ou intermunicipal”, assinala Samuel Infante, da Quercus.
Para o autarca de Sever do Vouga, “é urgente que haja medidas a nível nacional”. Pedro Lobo diz que, apesar de não ser uma “competência da câmara”, esta “tem de se mostrar proativa na solução de problemas e estar ao lado dos lesados”. É por isso que, juntamente com as organizações gestoras das zonas de caça locais, têm procurado “mitigar o impacto da sobrepopulação de javali”, estando já a ser preparado um “regulamento de incentivo ao abate”.
Neste concelho, os javalis “estão a atacar em todo o lado” e os estragos atingem “todo o tipo de culturas”, numa agricultura que é “sobretudo tradicional, mão de obra familiar, pequenas hortas”, por exemplo de mirtilo. Os acidentes que “possam ocorrer pela circulação deste tipo de animais na via pública” são outro fator que “preocupa”.
Os dados disponibilizados ao Expresso pela Guarda Nacional Republicana mostram que o número de acidentes rodoviários em Portugal envolvendo javalis tem vindo a aumentar nos últimos anos: registaram-se 364 em 2019, 560 em 2020, 741 em 2021 e 985 no ano passado. Até 31 de maio deste ano, o valor é de 351. Viseu é o distrito que, em todos os anos, contabiliza um número mais elevado.
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